Os indígenas nos Relatórios de Presidente de Província do Rio Grande do Norte

Angélica Lopes Bulhões

Graduada em História pela UFRN

Cristiano Otávio Miguel Junior

Graduado em História pela UFRN

Diversas fontes históricas sobre os povos indígenas do Rio Grande do Norte no período colonial já foram reunidos em um catálogo elaborado pela professora Fátima Martins Lopes, intitulado “Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos Referentes à Capitania do Rio Grande do Norte Existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa”. Esse catálogo reúne documentos de 1623 a 1823 e pode ser encontrado na internet. Apresenta ainda um índice remissivo contendo os etnômios da época.

Os documentos originais microfilmados e digitalizados encontram-se catalogados e disponíveis no site do “Projeto Resgate – Rio Grande do Norte (1623-1823)”.Clique aqui para ser direcionado.

Para o período imperial, fomos pesquisar as fontes dos Relatórios de Presidentes de Província (Provincial Presidential Reports: Rio Grande do Norte), que também se encontram digitalizadas e disponíveis para consulta. Clique aqui para ser direcionado.

Os documentos estão hospedados no site chamado “Center for Research Libraries: global resources networks”, que contém uma tabela para cada província com o resumo dos documentos, a data e o número de páginas. Nesse site, existem documentos de 1835 a 1930. Porém, focalizamos a pesquisa entre 1835 e 1889, por se tratar do período imperial.

Procuramos menções a indígenas nos Relatórios do Rio Grande do Norte e encontramos vários documentos, o que contrapõe a ideia de que não existem índios nos documentos oficiais do período imperial no RN. Entre os documentos que encontramos, vimos principalmente os índios aparecendo em censos estatísticos, registros de casamento, batismo e óbito. Esses dados vinham anexos ao Relatório, contendo o número de índios, a divisão por idades e por sexo. É interessante perceber que os índios, assim como os negros cativos e livres, ora apareciam e ora eram ocultados dos relatórios oficiais.

Além dessas aparições diretas com o nome índios, também encontramos nos Relatórios menções a “selvagens da civilização” e “indolentes habitadores do Brasil”, “que vivem na preguiça e ociosidade”, o que acreditamos também fazer referência aos indígenas. O quadro abaixo contempla os documentos que encontramos que fazem essas menções:

Relatórios de Presidente de Província em que aparecem os indígenas Número de páginas
Discurso 1838 45
Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da ultima sessão ordinaria da 2. legislatura provincial, no dia 7 de setembro de 1839: pelo ex.mo presidente da provincia d. Manoel de Assis Mascarenhas. 39
Discurso pronunciado pelo excellentissimo presidente da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da segunda sessão ordinaria da quinta legislatura da Assembléa Legislativa Provincial no dia 7 de setembro de 1845. 22
Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor dr. Casimiro José de Moraes Sarmento, presidente desta provincia do Rio Grande do Norte, abriu a 1.a sessão da 6.a legislatura da Assembléa Legislativa Provincial, anno de 1846. 39
Discurso apresentado pelo illustrissimo e excellentissimo senhor doutor Cazimiro José de Moraes Sarmento, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, na abertura da segunda sessão da sexta legislatura da Assemblea Legislativa Provincial, no dia 7 de setembro de 1847. 27
Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do anno de 1851, pelo ill.mo e ex.mo sr. presidente da provincia, o doutor José Joaquim da Cunha. 15
Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria que teve lugar no dia 17 de fevereiro do anno de c, pelo illm. e exm. sr. presidente da provincia, o dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho. 22
S/Titulo 1862 21
Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho abrio a 1a sessão da vigesima legislatura da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 13 de julho de 1874. 136
Quadro elaborado por Angélica Lopes Bulhões e Cristiano Otávio Miguel Júnior com base no site Center for Research Libraries: global resources networks. Acesso em: 15/11/2018.

Relatórios de Presidente de Província que aparecem os indígenas Número de páginas Discurso 1838 45 Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da ultima sessão ordinaria da 2. legislatura provincial, no dia 7 de setembro de 1839: pelo ex.mo presidente da provincia d. Manoel de Assis Mascarenhas. 39 Discurso pronunciado pelo excellentissimo presidente da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da segunda sessão ordinaria da quinta legislatura da Assembléa Legislativa Provincial no dia 7 de setembro de 1845. 22 Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor dr. Casimiro José de Moraes Sarmento, presidente desta provincia do Rio Grande do Norte, abriu a 1.a sessão da 6.a legislatura da Assembléa Legislativa Provincial, anno de 1846. 39 Discurso apresentado pelo illustrissimo e excellentissimo senhor doutor Cazimiro José de Moraes Sarmento, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, na abertura da segunda sessão da sexta legislatura da Assemblea Legislativa Provincial, no dia 7 de setembro de 1847. 27 Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do anno de 1851, pelo ill.mo e ex.mo sr. presidente da provincia, o doutor José Joaquim da Cunha. 15 Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria que teve lugar no dia 17 de fevereiro do anno de c, pelo illm. e exm. sr. presidente da provincia, o dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho. 22 S/Titulo 1862 21 Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho abrio a 1a sessão da vigesima legislatura da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 13 de julho de 1874. 136 Quadro elaborado por Angélica Lopes Bulhões e Cristiano Otávio Miguel Júnior com base no site Center for Research Libraries: global resources networks. Acesso em: 15/11/2018.

No documento de 1874, “Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho abrio a 1a sessão da vigesima legislatura da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 13 de julho de 1874”, foi apresentado os dados do censo populacional realizado em 1872. O censo indicava quatro categorias de “raças”: brancos, pretos, pardos e caboclos.

Dessa forma, podemos perceber que a categoria “índio”, que anos antes tinha aparecido em relatórios e falas provinciais, misteriosamente some no censo realizado em 1872. É importante contextualizar que, no momento em que o Estado Brasileiro realiza o primeiro censo nacional, estava em curso um processo de legitimação da mestiçagem que operava também na esfera do discurso, em que categorias como “pardo” e “caboclo” cumpriam uma função na consolidação da narrativa de miscigenação da população brasileira.

Partimos da hipótese que os indígenas não citados no censo populacional são os “pardos” e “caboclos”, já que essas categorias possibilitam a compreensão de que há uma mistura entre as raças. Isso mostra que há um esforço por parte do Estado Brasileiro para ocultar a identidade indígena, uma vez que o primeiro censo nacional exclui de seu questionário a possibilidade de um indivíduo reconhecer-se como índio. Vale ressaltar que essa perspectiva é encontrada no censo populacional da Província do Rio Grande do Norte.

Sendo assim, as categorias “pardos” e “caboclos” legitimam um discurso de que não havia mais índios na Província do Rio Grande do Norte em meados do século XIX, visto que os documentos oficiais ocultavam sistematicamente a identidade indígena. O índio havia desaparecido do censo como categoria populacional, restando em seu lugar apenas as categorias “pardo” e “caboclo”.

Nesse sentido, buscamos enfatizar a ideia de caboclismo ou caboclização como forma de resistência. Maria Sylvia Porto Alegre sugere que: “A perda de visibilidade, o chamado ‘desaparecimento’, guarda uma relação direta com a emergência da categoria denominada ‘caboclo’, produto da dinâmica cultural do contato” (Porto Alegre, 1993, p. 214). Nessa perspectiva, Fátima Lopes coloca que “a miscigenação pode ser apontada como motivo para essa diminuição do número de índios registrados, posto que os mestiços podem representar descendentes que aos poucos foram sendo identificados não mais como índios.” (Fátima Lopes, 2011, p. 190).

Portanto, essas categorias populacionais criadas no censo nacional corroboram um processo explícito de ocultamento da identidade indígena e um aparelhamento por parte do Estado com o intuito de invisibilizar o índio como categoria étnica. Podemos compreender, dessa forma, este como um processo de anulação da diversidade étnica e cultural constitutivo da formação do Brasil como Estado Nação.

Autores/as:

Angélica Lopes Bulhões - Graduada em História pela UFRN

Cristiano Otávio Miguel Junior - Graduada em História pela UFRN

Referências

LOPES, Fátima Martins. Miscigenação nas vilas indígenas do Rio Grande do Norte. Revista Mosaico, v. 4, n. 2, p.183-196, jul./dez. 2011.

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Aldeias indígenas e povoamento do Nordeste no final do século XVIII: aspectos demográficos da “cultura de contato”. In: DINIZ, Eli; LOPES, José Sérgio; PRANDI, Reginaldo (Org.). Ciências Sociais hoje – 1993. São Paulo: ANPOCS, HUCITEC, 1993.