Caboclos de Assu

Apresentação

Povo resistente, das terras áridas do sertão potiguar, os Caboclos têm se mostrado firmes e determinados na mobilização étnica e política no RN. Sua história é marcada pelo enfrentamento cotidiano de problemas decorrentes das constantes estiagens e pela dificuldade em acessar faixas de terras para o efetivo desenvolvimento de atividades agrícolas, pastoris e pesqueiras. Os Caboclos têm canalizado seus esforços na luta pelo reconhecimento de seus direitos como povo indígena a partir da manutenção das famílias em seu território e por meio de sua organização política.

Denominação

O uso do nome “Caboclos” como autodesignação pelos indígenas de Assu indica uma forma de se referir a uma distintividade social e cultural em relação à população circundante e a uma identificação histórica e parental com as famílias tidas como “diferentes” que viveram na região às margens do rio Paraú.

A distintividade dos Caboclos em relação aos moradores dos sítios que estão no seu entorno aparece, dentre outros aspectos, por um termo de classificação. Eles eram e são chamados pelos não-índios de “Tapuias”. Tal classificação deve-se à concepção de que eles possuem características físicas e determinadas práticas e valores sociais singulares que os diferenciam das demais pessoas que estão no seu entorno.

Dentre as características físicas acionadas para o reconhecimento da singularidade dos caboclos, são citadas a baixa estatura, os pés chatos — que “mais parecia um bolão” —, o “nariz labrojeiro” e as mulheres “abalofadas” de cabelos pretos e longos. No tocante às práticas e valores sociais, são mencionados os seus hábitos alimentares, suas práticas matrimoniais (casamentos endogâmicos, de preferência entre primos) e a liberalidade sexual das mulheres. Ao serem classificados como “Tapuios”, recai sobre a identificação dos caboclos uma forma de depreciação que indica uma especificidade e uma certa ideia de inferioridade. Com isso, estabelece-se uma fronteira (étnica) entre a comunidade e as demais localidades de seu entorno, reverberando em atitudes depreciativas, rixas e desconfianças.

Já o termo “Caboclo” é usado pelos próprios moradores da comunidade para se referir a sua origem indígena, a qual decorre da “Caboquinha pega a casco de cavalo”. O nome Caboclo foi incorporado como apelido pelos mais velhos. Como afirma Antonio Luiz Lopes, conhecido como Zamba:

Somos identificado como índio por isso. Nós trouxemos esse nome [de caboclo] do início, da geração, de lá pra cá, uns acha que a gente é tapuia, outra que a gente era turco, mas não tem nome de tribo de índio; somos tudo caboclo mesmo por causa da “caboquinha da mata”. (informação verbal)¹

Como conta Antonio Neto, a caboquinha Luíza, tida como a “mãe veia caboca”, foi a “que semeou tudo aqui”, constituindo uma família diferente, cuja marca distintiva é o “sangue de caboclo”. É esta a diferença que os próprios caboclos e os não-caboclos residentes no entorno da comunidade demarcam com bastante ênfase. Quer dizer, ser caboclo é ser de uma família originada por uma cabocla, em que esta confere nome a seus descendentes.

Localização e histórico da ocupação

A aldeia Caboclos de Assu está localizada entre os municípios potiguares de Assu e Paraú. Essa localização guarda estreita relação com os processos históricos identificados no período colonial, estes que são marcados pela interiorização da colonização por meio da fronteira de expansão pastoril e pelos intensos conflitos de resistência indígena à expansão colonial nos séculos XVII e XVIII.

O modelo econômico adotado pelos portugueses era a cana-de-açúcar desenvolvida no litoral, restando a introdução da atividade pastoril como saída econômica para exploração do interior. Para desenvolver econômica e demograficamente a Capitania e implantar definitivamente a posse do Rio Grande, seriam necessárias terras em grande extensão e, especialmente, a povoação interiorana.

A partir de 1680, as doações de sesmarias vão se intensificar, incomodando os índios que residiam ao longo dos rios. As próprias características do semiárido nordestino, tais como a escassez d’água e a vegetação rasteira e cactácea, determinariam a rápida dispersão dos criadores de gado por todos os campos do Rio Grande e a consequente expansão econômica do sertão interiorano. Foram criados alguns núcleos em torno dos quais se encontrava um curral e algumas palhoças para as famílias de vaqueiros. Os currais se espalharam também rapidamente ao longo dos riachos, comprometendo a ocupação e as relações dos índios com o território.

A criação de gado despontava como principal atividade econômica capaz de assegurar a subsistência da colônia, que já começara a prosperar com a cana-de-açúcar, seguida do aumento significativo da população não-indígena. O gado e também os cavalos passaram a constituir animais para corte, montaria e tração. Vale salientar que a pecuária já havia sido desenvolvida no interior da capitania pelos holandeses, decorrente da qualidade do solo não ser favorável ao cultivo da cana de açúcar e da necessidade de suprir as demandas do litoral de Pernambuco; foram também os holandeses que iniciaram a extração do sal no rio Açu, posteriormente ampliada pelos portugueses.

A fronteira de expansão pastoril implantada naquele momento não visava simplesmente buscar e frear índios — como as bandeiras —, mas ocupar efetivamente a terra, não sendo do interesse do colono o concurso do índio como mão-de-obra. As consequências são contundentes ou mesmo trágicas para os índios, uma vez que havia uma ameaça frontal à posse efetiva do território, implicando na privação de atividades de subsistência importantes como a caça e a pesca e na perda significativa de terras decorrente da fixação de curraleiros e do gado criado solto. Os índios constituíam barreiras à expansão da pecuária.

A ocupação de terras para o desenvolvimento da pecuária e o usos da mão-de-obra contextualizam o levante de índios sertanejos tapuia chamado de “Guerra dos Bárbaros”, “Guerra do Açu” ou “Confederação Cariri” em um cenário marcado por relações conflituosas de poder. Paralelamente à guerra com os índios, tinha-se uma guerra intensa entre os próprios colonizadores e desbravadores dos sertões. O governo português conseguiu equilibrar os interesses dos colonizadores envolvidos na ocupação do sertão, tomando posições mais firmes com colonos e indígenas quando o conflito já chegava ao fim e as terras estavam asseguradas. O conflito entre o paulista e mestre-de-campo Manuel Álvares de Moraes Navarro com o sesmeiro e capitão-mor do Rio Grande, Bernardo Vieira de Melo, fundador do arraial no Açu, e de posse da maioria das terras dessa região, denota as disputas pelo poder entre mestres-de-campo e capitães-mores, nas quais se acrescenta ainda as reivindicações de sesmarias feitas pelos moradores, que reivindicavam serem os verdadeiros conquistadores das terras.

A consequente má distribuição das terras permitiu a existência de imensos latifúndios desocupados, impactando diretamente os índios que residiam na região. A lei de 9 de janeiro de 1697, que impedia a doação de sesmaria, não tinha efeito retroativo e, portanto, não pôs fim ao latifundiarismo existente no Rio Grande. As sesmarias que haviam sido doadas antes de 1697 estavam garantidas e, portanto, os latifúndios, assegurados

Há, nos registros históricos, a concessão das seguintes sesmarias nessa região para:

1. Domingos de Azevedo do Vale²:

A sesmaria localizava-se na ribeira do Assu, abrangendo uma parte, correspondente a uma légua e meia, da data do sargento-mor Bento Teixeira Ribeiro e seu socio Manuel Neto da Cunha, concedida pelo capitao-mor Andre Nogueira (da Costa), em 06/09/1710, no riacho chamado Parau (RN 0094), que foi prescrita por nunca ter sido povoadas e encontrar-se devoluta. As terras requeridas avancavam do dito riacho até confrontar com as terras do próprio suplicante, Domingos de Azevedo do Vale (RN 0922), com tres leguas de comprimento — uma legua e meia das referidas terras prescritas e uma legua e meia de terras devolutas — e, de largura, meia legua para cada banda do riacho Parau.

Como consta na descrição da sesmaria, “O sesmeiro recebeu duas concessões: uma no riacho Parau, em 1719 (RN 0922); e uma no sitio Rabo de Bugia, em 1735 (RN 0409).” Em ambas as cartas (RN 0922 e RN 0409), segundo informa os documentos, não aparece a ocupação, nem o lugar de moradia do sesmeiro.

Na carta RN 0409, o suplicante Domingos de Azevedo do Vale alegou receber por heranca, juntamente com Jose Ribeiro de Faria, o sitio Rabo de Bugia, que pertencia a Manuel Ribeiro da Fonseca (RN 0046). Na mesma carta, foi mencionado que Domingos de Azevedo do Vale e Jose Ribeiro de Faria eram parentes de Manuel Ribeiro da Fonseca, sendo um seu filho e o outro seu genro; contudo, nao foi explicitado qual dos dois era o filho e qual era o genro de Manuel Ribeiro da Fonseca.

2. Carlos de Azevedo [do Vale]³:

A sesmaria requerida possuía três léguas de comprimento com uma legua de largura, no riacho do Parau, na ribeira do Assu, confrontando com as terras de Bento Teixeira Ribeiro, conhecidas como Beldroegas, e confrontando com as vargens das caraubas do riacho Parau, o qual desaguava no rio Assu.

Na descrição da sesmaria, consta que o “sesmeiro recebeu tres concessoes: uma no rio Pium, em 1711 (RN 0099); uma no riacho do Parau, em 1735 (RN 0924); e uma no riacho de Gaspar Lopes, em 1737 (RN 0930).” Outra observação encontrada no documento da sesmaria indica que:

O escrivao da fazenda real, Bento Ferreira Mousinho, informou ao provedor da fazenda real, Timotio de Brito Quinteiro, em 05/06/1735, que as terras solicitadas haviam sido doadas em 18/07/1719 pelo capitao mor, Luis Ferreira Freire, a Domingos de Azevedo do Vale (RN 0922; este sesmeiro recebeu outra concessao: RN 0409), como constava no livro Oitavo das Sesmarias. fls. 56, e haviam sido doadas novamente em 29/01/1733, pelo capitao mor, Joao de Barros Braga, a Carlos de Azevedo do Vale, como constava no livro Nono. fls. 11. No entanto, nenhum dos titulos havia sido confirmado. (...) O provedor da fazenda real, Timotio de Brito Quinteiro, informou ao capitao mor, Joao de Teive Barreto e Menezes, em 05/06/1735, que enviava a resposta do escrivao da fazenda real, e que o capitao mor decidiria o que deveria ser feito.

3. Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti⁴: Blogspot - ROGÉRIO PARAÚ.

[A sesmaria estava localizada no perímetro] Ribeira do Açu, RIACHO PARAÚ, sobras três léguas pegando da Lagoa Jabotá, entre a Serra do Macaco e o Serrote do Riacho, Pedra Lisa, Riacho Salgado, e pelo Riacho de Beldroega acima, buscando a Serra de JOÃO DO VALE, Olho-dagua São José e os três Boqueirões que saem para o Rio do Açu.

São nessas sesmarias, que se tornaram latifúndios em torno do rio Paraú, que os Caboclos de Assu se mantêm há pelo menos seis gerações. No relato de idosos, foram apontados diversos movimentos migratórios como indicadores da fixação da primeira família indígena na área em que atualmente residem. Dois movimentos migratórios apresentam significados históricos e culturais importantes para a compreensão desse processo: o primeiro compreendeu deslocamentos das ribeiras do Rio Upanema (devido a expulsões promovidas por ocupantes das terras); e o segundo, deslocamentos da Serra da Cepilhadeira, atual Serra de João do Vale (por expulsões e destruições das casas e roças dos indígenas). Para essa situação, há na tradição oral o registro de “grandes queimadas” que fizeram com que os índios abandonassem suas casas, sendo que os que ficaram foram perseguidos, facilmente encontrados e escravizados pelos fazendeiros como “selvagens”.

Na tradição oral do grupo, o casal fundador da comunidade, Antônio Francisco e Luíza, além de outros índios que habitavam a ribeira do Rio Upanema e/ou regiões serranas próximas à ribeira do Açu, foram expulsos de suas aldeias por supostos donos-de-terra. Fala-se que Antônio Francisco, apesar de ser considerado “civilizado”, é originário da região de Upanema, onde residia com sua família, que também era indígena, e Luíza, da região da Serra de João do Vale. As narrativas que dão conta da “tapuia selvagem” e do “caçador/vaqueiro civilizado” explicitam uma acepção na qual a ênfase dada aos componentes “naturais” da “índia tapuia” supõe uma alteridade radical que recai, de um lado, naquilo que é classificado como Tapuio (Luíza) — que compreende os índios selvagens — e como Tupi (Antônio Francisco) – que abrange os índios civilizados.

Sobre o casal fundador, as narrativas apontam que Luíza era uma “tapuia braba” ou uma “caboquinha da mata” que foi perseguida, capturada e domesticada por um vaqueiro, de nome Antônio Francisco, “a dente de cachorro” e a “casco de cavalo”. É em torno dessa captura que os Caboclos de Assu estão demarcando sua especificidade étnica e sua origem indígena. A “tapuia” ou “caboquinha” vivia dentro de “furnas” (uma espécie de caverna) e foi capturada por um “civilizado” que foi o responsável por sua domesticação. Os mais velhos apontam a furna da Gargantinha, localizada numa das fazendas da região, como local da captura. Em alguns lajeiros existentes próximos à furna e noutros locais das fazendas, é comum encontrar, segundo alguns caboclos, “pilões” nas pedras, onde eram preparadas as refeições, também sendo indicados como marcas da presença indígena na região.

Além de ser um lugar de esconderijo, a furna acima referida foi um local utilizado pelos índios como “rancho”. A “furna dos índios”, como é também chamada a furna da Gargantinha, servia como espaço de descanso nas longas e cansativas caminhadas dos índios que procuravam acessar as matas fechadas, as serras e a “caatinga” no intuito de caçar e coletar frutos e plantas comestíveis, como alguns tipos de cactos. Na Serra do Coronel ou Serra do Olho D’Água, mais próxima à comunidade, há dois grandes e antigos cajueiros que foram plantados pelos índios, próximo a um olho d’água. Na região da “caatinga”, que se situa hoje próxima à BR 304 (que liga Natal à Mossoró), os índios chegavam a permanecer por um período mais longo, no intuito de desenvolver atividades agrícolas, especialmente nos períodos de maior estiagem, por esta região possuir água e solo fértil.

A ocupação das terras por fazendeiros ocorreu a partir de duas formas principais: na primeira, os fazendeiros que, em sua maioria, ostentavam o título de coronel, possuíam forte influência política na região e diziam que aquelas terras eram de sua propriedade. Os fazendeiros também recrutavam os indígenas para trabalhos em suas terras, especialmente na edificação de cercas de pedra, na limpeza do mato, na abertura de estradas, mas não só. A relação de dependência dos índios com os fazendeiros aumentava à medida que estes dispunham de mercearias e os valores que deveriam ser pagos pelo trabalho eram descontados nas compras de gêneros alimentícios, era comum também o trabalho ser trocado por “prato de comida”. Na segunda forma de ocupação, pessoas que se diziam parentes dos indígenas aproveitavam a situação agonizante dos donos-de-terras para demandar o direito de herança dos bens.

A despeito destas ocupações, os Caboclos de Assu se mantiveram no local onde atualmente residem, resistindo às condições desvantajosas de trabalho, seja nas atividades agrícolas e pesqueiras (tudo que ainda é produzido e pescado tem que ser dividido com os fazendeiros), seja nos trabalhos realizados para estes, considerando o agravante de que à época não havia pagamentos em moeda corrente, mas trocas por “prato de comida” e produtos que o próprio fazendeiro comercializava em sua mercearia.

Na tradição oral dos Caboclos, o trabalho braçal dos próprios caboclos foi utilizado para a delimitação das fazendas. As cercas de pedras, muito comuns no território, são indicadores importantes do uso desse trabalho na configuração das fazendas e na organização e divisão dos espaços.

Organização social e política

A aldeia dos Caboclos é formada por descendentes de um tronco comum, o do casal Antônio Francisco e Luíza, constituindo, na visão dos indígenas, “a grande família de caboclo” gerada por uma “cabocla”. O casal teve quatro filhos (Pedro Caboclo, José Caboclo, João Caboclo e Antonio Turco) e cinco filhas (Joana, Maria, Cândida, Júlia e Damásia).

Em 2019, a aldeia contava com a seguinte população:

POPULAÇÃO
Indígena Não indígena
Famílias Pessoas Famílias Pessoas
40 96 06 33
Fonte: Adriano Lopes (liderança local)

Em um levantamento genealógico realizado de 2011 a 2013 pelos pesquisadores José Glebson Vieira e Jailma Nunes Oliveira, a população indígena era composta por 37 famílias indígenas e 115 pessoas. Aproximadamente 90% demarcavam vínculo parental com três filhos do casal Antonio Francisco e Luíza: “Pedro Caboclo”, “Zé Caboclo” e “João Caboclo”, os quais constituem os “troncos velhos”, sendo chamados de bisavós, avós e pais. Os 10% restantes apontam para o vínculo genealógico com as irmãs “Cândida Cabocla”, “Joana Cabocla” e “Maria Cabocla”, igualmente filhas do casal fundador e reconhecidas como “troncos velhos”.

Entre os indígenas, há uma preferência matrimonial por primos, parentes próximos, casamento avuncular (com tio e sobrinha, tia e sobrinho), conjunto de irmãos com conjuntos de irmãs e relações entre enteados, dentre outros arranjos.

A distribuição das casas obedece uma lógica de parentesco, notadamente a partir da constituição de grupos domésticos compostos por um casal mais velho que ocupa o centro e, em seu entorno, os/as filhos/as casados/as levantam suas casas. A área onde as residências estão erguidas pertence à própria comunidade, graças à aquisição, por parte da Prefeitura Municipal de Assu, e doação desta à Associação Comunitária Caboclos. Já as áreas de produção agrícola, extrativismo, caça e pesca são das fazendas. Apesar disso, os usos de áreas para cultivo e outras atividades produtivas têm se mantido de forma contínua entre os indígenas, cuja ocupação replica a organização da aldeia, ou seja, cada família pertencente a um grupo doméstico trabalha em determinada área: em geral, trabalham juntos pai, filhos/as solteiros/as e casados/as (com seus/as respectivos/as cônjuges), netos/as e sobrinhos/as de primeiro grau.

A organização política dos Caboclos guarda estreita relação com sua organização social. O casal fundador, Antonio Francisco e Luíza, exercia a liderança política, por ser o “tronco principal”, promovendo a mediação das famílias junto aos fazendeiros para o acesso de determinadas áreas a serem cultivadas e dos açudes para a prática da pesca, como também para formação de relações de compadrio. Desde então, configurou-se uma histórica e persistente relação de patronagem a que as famílias dos Caboclos estão envolvidas ou implicadas a partir de relações patrão/morador: primeiro como trabalhadores na própria fazenda, depois por arrendamento (meação). O patrão é o dono da terra, a qual os indígenas recebem o direito do usufruto econômico, sendo realizadas algumas obrigações, como, por exemplo, o trabalho nas terras de forma gratuita com pagamento de meação. Essa relação se sustenta por uma série de práticas, valores, cargas simbólicas e expectativas mútuas, como as que podem ser expressas através dos laços de compadrio.

Após a morte do casal fundador, a liderança passou a ser exercida pelos/as filhos/as do casal que se mantiveram na aldeia. Foram eles/as: Pedro Caboclo, João Caboclo, José Caboclo, Maria, Cândida e Joana; duas filhas e um filho do casal migraram da aldeia para cidades potiguares como Mossoró, Riachuelo, Itajá, dentre outras. A maior família na aldeia era a de Pedro Caboclo, resultado de quatro uniões matrimoniais, o que lhe conferiu maior destaque na aldeia. O sucessor de Pedro Caboclo foi seu filho Luiz (conhecido como Luiz de Pedro), que também constituiu uma numerosa família, resultado de três uniões matrimoniais, e da qual saiu a liderança que participou da mobilização étnico-política no Rio Grande do Norte, que foi Luiz Francisco da Silva Filho (conhecido como Luiz do Carmo).

Luiz do Carmo, filho de Luiz de Pedro, neto de Pedro Caboclo e bisneto do casal, foi um dos fundadores da Associação Comunitária do Caboclo, no início dos anos 2000. É por meio da Associação Comunitária que sua liderança teve maior visibilidade e legitimação face ao Estado e, sobretudo, junto à mobilização de comunidades rurais que estava se iniciando quanto ao reconhecimento étnico no RN. Luiz foi o representante da comunidade junto às instituições públicas e organizações indígenas como APOINME, até ser sucedido por Antonio Adriano Lopes, filho de seu irmão (Antonio Lopes), portanto, tataraneto (filho do filho do filho) do casal fundador, que até hoje é o representante dos Caboclos.

Ambiente, situação territorial e atividades produtivas

Os Caboclos de Assu habitam uma região semiárida entre as cidades de Paraú e Assu. A caatinga predominante é a hiperxerófila, que se caracteriza por uma vegetação de caráter mais seco, com abundância de cactácea e plantas de porte mais baixo. Outras espécies também são encontradas, tais como: jurema-preta, mufumbo, marmeleiro, xique-xique e mandacaru, além da palmeira carnaúba. Pequenas áreas são cultivadas com milho e feijão.

Trata-se de uma área não preservada decorrente do desenvolvimento da pecuária tanto pelos fazendeiros quanto por alguns moradores da comunidade. Em toda a extensão, as terras são destinadas prioritariamente para a criação de animais (bovinos, ovinos e caprinos), não sendo preservadas inclusive as margens do rio e dos riachos. O desmatamento tem impactado diretamente o rio e os riachos, uma vez que sem as matas ciliares observa-se o aumento do nível de erosão e do assoreamento das águas. As matas existentes estão cada vez mais atingidas pela ação do desmatamento decorrente da comercialização da madeira destinada às fábricas de cerâmica. Vale salientar que há, na região do Vale do Açu, o Polo Cerâmico Açu & Itajá, que concentra uma quantidade significativa de estabelecimentos fabris e que tem demandado significativamente o corte indiscriminado de madeira, que é fonte de combustível para os fornos das fábricas.

Outros dois fatores contribuem para a degradação da região. O primeiro decorre da concentração dos melhores solos nas mãos de poucos, forçando a maioria ao uso de terras marginais, o que gera degradação ambiental. O segundo se deve à instabilidade climática, principalmente com relação à forma irregular com que as chuvas se distribuem na região, tanto temporal como espacialmente.

As famílias da aldeia ocupam faixas de terras transmitidas por herança ou de posse coletiva, pertencentes à Associação Comunitária. As terras de herança foram de Pedro Caboclo, que adquiriu uma faixa de terra — que cruza de leste a oeste o rio Paraú e o Açude do Riacho chegando até o pé da Serrota — que foi transmitida para alguns de seus filhos, estes que ainda hoje mantêm o domínio. A Associação Comunitária adquiriu uma área pequena — onde se encontram algumas residências — e, posteriormente, recebeu a doação de uma área estimada em 12,78 hectares da Prefeitura de Assu, onde se concentram atualmente a maioria das residências da aldeia.

As faixas de terras que pertencem por herança a algumas famílias indígenas e as da Associação Comunitária são quase exclusivamente para moradia. As herdadas apresentam maior potencial para atividades agrícolas e também pastoris. Já as terras da Associação possuem pequenas áreas por trás de algumas residências que não oferecem condições para a produção agrícola de modo satisfatório, já que o solo é pedregoso, com fragmentos de rochas na superfície, rico em minerais, mas pobre em matéria orgânica, devido às características da região. Nesses espaços, as famílias se ocupam com a criação de aves, como galinha, guiné, e também de suínos e caprinos.

As outras famílias desenvolvem atividades agrícolas em terras de fazendas próximas, as quais oferecem melhores condições de trabalho devido à proximidade do rio Paraú e dos açudes. O rio não é perene, apresentando cheias apenas quando se observa uma quadra chuvosa significativa, que vai de janeiro a maio. A vazão de água do rio aumenta à medida que o Açude da Beldroega (que fica a montante) sangra, propiciando ainda mais a pesca e a abertura dos roçados que ficam às suas margens, dentro das fazendas. Além do rio Paraú, os açudes existentes no entorno da aldeia também são utilizados pelas famílias para a atividade pesqueira. Alguns açudes estão localizados nas fazendas e para o uso, os/as pescadores/as repartem o pescado com o fazendeiro, tal qual se faz com a produção agrícola.

Além da pecuária extensiva de bois e bodes, da pesca artesanal, da agricultura extensiva de subsistência, algumas famílias desenvolvem o extrativismo de palha de carnaúba para produção de utensílios e outros objetos de uso doméstico e comercial, de semente de oiticica para produção de óleo e de xique-xique destinado à alimentação dos animais. O artesanato da palha da carnaúba tem se destacado como fonte de renda alternativa para as famílias, num esforço de convivência com o semiárido. Trata-se de uma atividade secundária que se vincula ao plantio, à pesca, à criação de bovinos e caprinos e ao extrativismo.

Provavelmente, o desenvolvimento secundário da atividade relativa à carnaúba decorre do fato de as pessoas adquirirem a matéria prima por meio de compra, tornando mais dispendiosa a produção e, consequentemente, a comercialização. Ao mesmo tempo, a restrição à matéria prima limita o aproveitamento da própria carnaúba, já que não se tem o registro da retirada da cera, da exploração do pó produzido após a secagem das palhas, nem do uso dos frutos, que são ricos em nutrientes, para ração animal e para a extração de óleo comestível, bem como da utilização das raízes para uso medicinal.

Articulações no Movimento Indígena

A participação de três representantes dos Caboclos numa audiência pública em 2005 em Natal foi um marco na mobilização política da comunidade no RN. O evento contou com a presença de representantes das comunidades dos Eleutérios do Catu e Mendonça do Amarelão. Intitulando-se como “índios emergentes” do Rio Grande do Norte, reivindicaram o reconhecimento de sua especificidade étnica e cultural e, por conseguinte, a garantia de políticas públicas diferenciadas. Sob a forma de um abaixo-assinado, os indígenas presentes no evento demandaram aos deputados estaduais e aos representantes da FUNAI, do Ministério Público Federal (MPF), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Governo do Estado, da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia CAI/ABA o reconhecimento e o desenvolvimento de ações diferenciadas.

A participação das três comunidades neste evento teve uma importância simbólica, não apenas para os representantes indígenas que ali estavam, mas também para o cenário estadual e regional. Do ponto de vista dos próprios índios, as demandas por seu reconhecimento implicaram uma maior visibilidade à situação de resistência, na medida em que fatores históricos específicos foram (e são) acionados para demarcar a ascendência indígena, como os vínculos com os antigos aldeamentos e as “vilas de índios”, e referências aos antepassados indígenas a partir de narrativas que enfatizam processos de expulsões, reocupações de áreas, migrações e violências que implicaram a perda do controle dos seus territórios e da submissão a grandes proprietários.

Para o cenário estadual e regional, a “emergência” das três comunidades indígenas subverteu o discurso oficial — até então respaldado pela historiografia — que sugeria a extinção ou o desaparecimento dos indígenas no estado desde o período colonial. A “Guerra dos Bárbaros”, “Guerra do Açu” ou “Confederação Cariri” é vista como o principal acontecimento que teria posto fim aos índios no estado, atrelado à ocupação extensiva do sertão. Por ser uma guerra justa, os sobreviventes foram obrigados a trabalhar como escravos em canaviais ou nas missões religiosas. Na metade do século XVIII, compartilhou-se a ideia de que os índios já se encontravam dominados nos aldeamentos, sofrendo as consequências da perda do seu território.

Desde então, lideranças e outros indígenas da aldeia têm participado das atividades e mobilizações do movimento indígena, como as audiências públicas, assembleias indígenas dos povos do Rio Grande do Norte e assembleias de mulheres e jovens indígenas, dentre outros. A liderança da aldeia integra a Articulação dos Povos Indígenas do RN (AIRN), criada em 2017.

Autor

José Glebson Vieira

Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN.

Notas de Rodapé

¹ Fala de Zamba (Antonio Luiz Lopes), em entrevista a José Glebson Vieira, em setembro de 2010.

² NATAL (cidade). Requerimento de Domingos de Azevedo do Vale ao rei [D. João V] pedindo confirmação de carta de sesmaria de terras no riacho Paraú, na ribeira do Açu, doadas pelo capitão-mor Luis Ferreira Freire. Arquivo Histórico Ultramarino-RN, código de referência: Cx. 3, D. 218. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/RN%200922. Acesso em: 14 de fev. de 2022.

³ NATAL (cidade). Requerimento do coronel Carlos de Azevedo [do Vale] ao rei [D. João V] pedindo confirmação de carta de sesmaria de terras, no Riacho Paraú, na Ribeira do Açu, doadas pelo capitão-mor João de Teive Barreto e Menezes. Arquivo Histórico Ultramarino-RN, código de referência: Cx. 3, D. 222. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/RN%200924. Acesso em: 14 de fev. de 2022.

⁴ NETO, Antônio Rogério Peixôto. Breve Histórico de Paraú. Rogério Paraú, 2009. Disponível em: http://rogerioparau.blogspot.com/2009/06/. Acesso em: 14 de fev. de 2022.

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VIEIRA, José Glebson; KOS, C. V. N. M. Invisibilidade, resistência e reconhecimento indígena. In: Povos Indígenas no Brasil: 2011-2016. 1ed. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2017. v. 1, p. 519-522.

Como referenciar

VIEIRA, José Glebson. Caboclos de Assu. Povos Indígenas do Rio Grande do Norte. 2020. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/povosindigenasdorn. Acesso em:

Vieira, José Glebson. “Caboclos de Assu”. Povos Indígenas do Rio Grande do Norte [online]. []. http://www.cchla.ufrn.br/povosindigenasdorn

Vieira, José Glebson. (2020). “Caboclos de Assu”. Povos Indígenas do Rio Grande do Norte. [online]. . http://www.cchla.ufrn.br/povosindigenasdorn

Vieira, José Glebson. 2020. “Caboclos de Assu”. Povos Indígenas do Rio Grande do Norte. . http://www.cchla.ufrn.br/povosindigenasdorn

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