Potiguara no Catu/RN: Ação política e repercussões da educação escolar indígena

Claudia Moreira

Mestre em Antropologia Social (UFRN).
Pós-Graduanda (lato sensu) em Educação em Direitos Humanos,
Diversidade e Questões Étnico - Sociais ou Raciais.

Os índios Potiguara, como se definem as famílias descendentes dos Eleotérios, moram nas proximidades do rio Catu, em trechos fronteiriços entre os municípios de Canguaretama e Goianinha, região sul do Rio Grande do Norte, embora a rede de parentesco reconhecida por eles indique ainda pessoas vivendo no município de Vila Flor e nos municípios sede, bem como na capital, Natal. Com uma população de cerca de 226 famílias, correspondendo a 992 pessoas (FUNAI, 2020), não possuem território demarcado. Recebem assistência da agência indigenista oficial; da CONAB, em termos de segurança alimentar; e das Secretarias Estadual e Municipal de Educação desde que organizaram uma escola indígena na aldeia. Em termos de ocupação, consideram-se agricultores, em que muitos fornecem mão de obra para as empresas de carcinicultura, usinas e fazendas das proximidades. Nos dias de feira livre, aos finais de semana, é fácil encontrar um “Catuzeiro” negociando seus produtos nos municípios litorâneos da região.

As políticas públicas disponíveis para serem acessadas pela população brasileira coexistem em diversos setores, contudo o caminho a ser percorrido para se obter acesso e inclusão tem se mostrado diverso. De um lado, o Estado disponibiliza o acesso, de outro não garante a inclusão. A Constituição Federal de 1988, no capítulo II referente aos Direitos Sociais, em seu artigo 6º afirma à sociedade brasileira: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção, a maternidade e a infância, a assistência aos desamparados” (EC nº 26/2000 e EC nº 64/2010). Marta Rodrigues define a noção de política pública “como um processo pelo qual os diversos grupos que compõem a sociedade cujos interesses, valores e objetivos são divergentes, tomam decisões coletivas, que condicionam o conjunto da sociedade” (RODRIGUES, 2010, p.13).

Para os povos indígenas, em particular no Nordeste, a construção de acessos às diversas políticas passa pela atuação em movimentos sociais, tanto para obter os direitos específicos garantidos na Constituição Federal (art. 215, 231 e 232), quanto na luta por novos direitos. Para superar a condição de povos em situação de direitos violados, os povos indígenas no Brasil tornaram viáveis, nessa disputa, caminhos gestados através da intensa mobilização e organização política.

Nesse artigo, serão abordadas, na história da ação política dos Potiguara do Catu, as estratégias para garantir o acesso à educação escolar específica e suas repercussões. Nessa prática formalizada, o ensino do NheenGatu (tupi moderno) e o toré constituem os elementos simbólicos centrais historicamente reelaborados. Iremos, a partir da experiência no Rio Grande do Norte, tematizar os acessos às políticas públicas que vêm sendo construídas através da organização e ação política dos próprios indígenas.

Entre 2003 e 2007 realizei, em diversos períodos, pesquisa acadêmica sobre os Potiguara do Catu, que resultou numa dissertação de mestrado no PPGAS/UFRN. Naquele período, já estava visível o posicionamento político das lideranças sobre a importância de reelaborar a educação escolar na comunidade tendo como foco principal a sociabilidade da criança. A experiência com o NheenGatu já vinha sendo desenvolvida, embora ocorresse em dias não letivos. Observei que grande parte dos participantes das aulas eram crianças e elas costumavam apresentar o que aprendiam para moradores e visitantes no Catu. Mostravam as idades em tupi, faziam brincadeiras umas com as outras usando expressões aprendidas, destacando-se nesse protagonismo. Por sinal, uma dessas talentosas crianças, Claudiane Soares, trabalha, atualmente, como professora na Escola Municipal João Lino.

Sem a intenção de descrever um esquema cronológico muito rígido, pode-se afirmar que o agenciamento indigenista não oficial ocorrido na comunidade em 2002, 2003 e 2004, através de um esforço individual de um funcionário da Fundação José Augusto, fez com que o acesso à língua tupi fosse estabelecido aos Potiguara no Catu. Essa iniciativa, logo receberia a parceria de um político da cidade de Natal, incentivando, com apoio financeiro, os deslocamentos e a participação de um ex-aluno da UFRN especialista no idioma indígena, que passou a mediar as aulas, nas manhãs de domingo. Havia muito empenho por parte dos intermediários em transmitir os conhecimentos sobre o tupi e performances do toré. Contudo, estudiosos afirmam que não é pertinente definir o toré de modo descontextualizado, e sim procurar entender suas significações para cada grupo indígena que o pratica (GRUNEWALD, 2005; VALLE, 2005).

Como pesquisadora, naquele período, pude observar o crescente interesse das crianças, adolescentes e adultos em conhecer aquele universo. Nos ambientes comuns, entre jovens e adultos, não se recorre a essa língua atualmente, mas ela consiste em um importante elemento simbólico que também viria dar coesão às reivindicações étnicas no Catu, as reelaborações identitárias (OLIVEIRA, 2004). De outro lado, também seria usado como um elemento de diferenciação com a sociedade envolvente e suas expectativas sobre o indígena (SILVA, 2007).

Em 2005, a Secretaria Municipal de Canguaretama aprovou o projeto “Nhe-em-Catu: noções da língua Tupi em sala de aula”. Pude conversar com a secretária de Educação do Município, na época, Hortência Gomes, sobre o projeto. De acordo com ela, já havia conhecimento por parte da prefeitura local da existência daquela comunidade de “remanescentes indígenas” no Catu, e, ao receberem a visita de algumas pessoas de Natal, “decidiram fazer uma experiência com uma língua indígena”.

(...) Esteve uma equipe aqui, o professor Aucides que eu acho que é da Fundação José Augusto. Esteve uma aqui cujo nome não lembro agora. Foi esse professor junto com outros professores. Tinha uma pessoa da UFRN e tinha um padre, Fábio. Você conhece? Ele era integrado a essas questões. Eu sei que essa equipe esteve aqui. Já existiam umas reuniões que tratava dessas questões com a comunidade. Então, eles chegaram aqui com a proposta, eu abracei a ideia, achei que fosse interessante e foi assim que tudo começou. A comunidade já tinha esse interesse, até por causa desses entendimentos entre essa equipe e a comunidade, se não me engano era través de uma ONG que faziam as reuniões lá. Então trouxeram pra secretaria essa ideia. Eu levei a ideia para o prefeito. Achei interessante que os alunos ampliassem seu conhecimento, porque lá não está sendo estudado não só a questão da língua, mas também a questão da cultura indígena (...).

(GOMES, 2005 apud SILVA 2007)

A narrativa da Secretária de Educação permitiu entender como a militância pró-índio logrou associar seus interesses aos da administração pública municipal. O que, em larga medida, estaria bem desenvolvido entre os participantes dessa iniciativa no Catu. As aulas de tupi na Escola continuariam, agora financiadas pela Prefeitura Municipal de Canguaretama. Em 2006, durante minha pesquisa de mestrado, uma professora da Educação Infantil me transmitiu que os alunos teciam comentários em tupi nos corredores da escola. Também aprenderam a realizar operações matemáticas usando o sistema da língua. Naquele período, Aderildo, ex-aluno do primeiro preceptor de tupi no Catu, tinha assumido a função de transmitir conhecimentos sobre a língua indígena na escola, através de um contrato com a Secretaria Municipal de Educação (SILVA, 2007, p. 220). Nesse sentido, teríamos uma geração aproximada com o tupi no Catu.

Através da literatura antropológica referente aos índios do Nordeste, sabe-se que não constituiu uma prática comum o investimento na recuperação de línguas indígenas. Nesse caso, os Potiguara do Catu fazem um aproveitamento específico dessa experiência e se singularizam em construir caminhos para suas ações políticas para o acesso aos direitos garantidos constitucionalmente.

No contexto do Nordeste, houve o caso dos Fulniô, no Sertão Pernambucano, chamando atenção dos indigenistas do extinto Serviço de Proteção dos índios (SPI) para reconhecê-los como indígenas a partir da percepção que mantinham uma língua indígena e rituais religiosos. Isso iria garantir-lhes assistência social específica. Um contraponto mais atual, seria os índios Potiguara da Paraíba, que investiram em aulas de tupi, embora já se relacionassem há várias décadas com a FUNAI.

Reconhecendo a mediação ocorrida com os Potiguara do Catu para apropriação de uma língua indígena, atenta-se para um importante fator: o de entender como se organizou, inicialmente, a relação política dos Potiguara com a língua tupi, cujos desdobramentos estão aparentes nos dias atuais. A Escola Municipal João Lino, atualmente estabelecida no Ministério da Educação como escola indígena no Rio Grande do Norte, ainda percorreria um longo caminho de mobilização, especialmente através da figura do cacique Luiz Katu, atuante como representante da Articulação dos Povos Indígenas do RN (APIRN).

Em sua biografia pessoal, já foi aluno da escola João Lino, cursou faculdade de pedagogia, é formado em educação indígena através do projeto Saberes Indígenas na Escola e pós-graduando em etnologia indígena. Ele faz parte do quadro de professores indígenas na escola João Lino. Sua liderança foi crucial nas mobilizações por diversos acessos, encampou a luta pela educação diferenciada. Dado o pioneirismo, Luiz Katu contribui com projetos educacionais desenvolvidos em outras etnias indígenas no RN. A exemplo de outros povos indígenas na Região Nordeste, a garantia desse direito atenderia o acesso à educação escolar específica também com a perspectiva de mediar os projetos de futuro envolvendo as gerações mais jovens no Catu.

Escola como espaço de autonomia: repercussões da educação escolar indígena potiguara

EEmbora se trate de um direito constitucional garantido pelo Estado brasileiro, sua consolidação, relacionado com a educação diferenciada entre os Potiguara, ocorreu somente após a mobilização e reivindicação por parte da comunidade. Irei relatar alguns contextos de ação política organizadas pelas lideranças constituídas em busca do acesso à escola Indígena, cujos efeitos se relacionam com a ampliação das redes associativas e a mobilização das novas gerações. Como é o caso da criança indígena, que possui o direito de vivenciar uma educação que respeite a história do seu povo, o tempo da comunidade e o diálogo com os temas, tidos como importantes para seus integrantes.

Uma situação emblemática da mobilização organizada pelos Potiguara foi a realização de uma Audiência Pública na Câmara de Vereadores do Município de Canguaretama, em 2008. Segundo Luiz Katu — o cacique —, não havendo quórum por parte dos políticos eleitos representantes do povo, os Potiguara decidiram fazer uma atuação enfatizando o direito indígena à educação diferenciada: “dançamos um toré de pé descalço no calçamento quente e fechamos a rua principal”. Para ele, foi essa ação política que destravou o embate, e os vereadores começaram a comparecer ao prédio público para dar à audiência a devida atenção. Essa resistência municipal em reconhecer o direito indígena aos acessos, já vinha ocorrendo desde anos atrás (2003), quando as lideranças solicitaram à Secretaria Municipal de Educação a inclusão no censo escolar como povo indígena.

Para fazer uma comparação com outros povos indígenas do Nordeste, irei tratar agora de uma publicação dos professores indígenas Kapinawá (2016), na qual foram contadas as experiências iniciais com a educação escolar Indígena. De acordo com os professores, “houve uma espera” para que a FUNAI, instituição indigenista oficial, incluísse em seus eventos formativos, os professores Kapinawá (PROFESSORAS E PROFESSORES KAPINAWÁ, 2016). Situação análoga à vivenciada pelos Potiguara no Catu, quando a organização da escola indígena foi iniciativa dos próprios atores sociais. Ou seja, as escolas produziam educação específica, mas não estavam “oficializadas”.

Por esse motivo, os professores indígenas não participavam dos processos formativos e tampouco recebiam o devido apoio dos órgãos oficiais. Já os Potiguara reuniram os professores indígenas e as famílias e decidiram produzir educação escolar Indígena no Catu, em 2008. O registro no Ministério da Educação (MEC) como escola indígena ocorreu em 2009, porém a Secretaria de Educação Estadual retirou o registro e solicitou um “documento da FUNAI”, explicou o cacique Potiguara, Luiz Katu. A FUNAI atestou a demanda indígena, esclarecendo a Secretaria de Educação/RN. O MEC, por outro lado, emitiu uma nota técnica subsidiando a situação e apoiando a solicitação dos indígenas. Assim, em 2014, o Catu obteve a oficialização da Escola Indígena João Lino (PLANO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO/RN, 2015).

Dessa forma, conclui-se que foi uma conquista desses povos o Direito a desenvolver em seus territórios uma educação que atendesse suas demandas específicas, tal qual assegura a legislação brasileira. Contudo, atualmente, as fronteiras de negociação se retraíram, considerando que o Decreto n. 10.088 de 05 de novembro de 2019, no artigo 5º do capítulo III, das disposições finais, revogou o Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004, que promulgava no Brasil a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – sobre Povos Indígenas e Tribais. O Decreto entrou em vigor em 6 de maio de 2020.

Os povos indígenas em Pernambuco possuem uma relevante história na mobilização por educação diferenciada. Esse tema, inserido nas assembleias locais, é sempre debatido e se torna cada vez mais objeto de ação política, uma vez que as escolas possuem precariedades históricas e nada tem sido feito pelas administrações estaduais – situações que também se apresentam a nível nacional, afirmam as lideranças indígenas. Em Pernambuco, as escolas indígenas foram estadualizadas em 2002, porém desde 1994, o comitê de educação escolar indígena havia feito essa solicitação em nível nacional (PROFESSORAS E PROFESSORES KAPINAWÁ, 2016).

No Rio Grande do Norte, mais precisamente, no Catu, a Escola Indígena João Lino recebe apoio do município e do Estado, conforme uma entrevista com Luiz Katu, cacique, realizada em 2017 por alunos do curso de comunicação social audiovisual da UFRN. As secretarias apoiam também a produção de material didático específico elaborado pelos próprios professores.

Comparando esse modelo a de outros povos no Nordeste, como é o caso das formas de gestão escolar entre os Kapinawá, essas compreendem espaços participativos e de mobilização, espaços de construção de autonomia. O material didático produzido com os professores indígenas reafirma os processos de organização dos saberes locais, muitas vezes registrados apenas oralmente. A participação em redes associativas também tem se mostrado uma estratégia importante para os indígenas. No caso do estado de Pernambuco, existe a Comissão Estadual de Professores Indígenas (COPIPE). Há também a associação com ONG’s — como é o caso do Centro de Cultura Luiz Freire —; instâncias federais; o CIMI; as universidades; a Secretaria Estadual de Educação e a FUNAI. Em nível local, os povos indígenas reproduzem as formas de organização do movimento indígena nacional e estabelecem esferas de diálogo e de participação política interna e externamente.

SSobre a possibilidade de a escola indígena no Catu vir a ser um espaço contraditório ou que assuma um sentido ambivalente, necessitaria de mais observação para analisar. Temos o exemplo da pesquisa sobre educação escolar realizada pela antropóloga Valéria Weigel, entre os Baniwa que vivem nas proximidades do rio Içana, no Estado do Amazonas, que demonstrou:

No caso dos internatos, na qualidade de instituição da cultura ocidental imposta às populações indígenas, pode-se afirmar que facilitou a difusão de certos elementos dessa cultura (como, por exemplo, a escrita em língua portuguesa), o que contribuiu para o fortalecimento da ideologia modernizante, hegemônica, na sociedade nacional, ao mesmo tempo em que colocava esses elementos ao alcance de membros do grupo indígena, de modo que pudessem transformá-los em instrumentos para suas ações. O estudo mostra que a língua portuguesa aprendida nos internatos foi utilizada, em vários momentos, em suas defesas, denúncias e reivindicações. Desse modo, a escola, como todo espaço socialmente construído, é um espaço em aberto, onde as práticas nele empreendidas produzem efeitos resultantes de um feixe de relações – que poderíamos denominar de negociações – entre as forças sociais envolvidas.

(WEIGEL, 2020, p. 5. Grifo nosso)

No caso dos Baniwa, existiram sucessivos processos de produção de educação formal liderada por mediadores externos e com muitas disputas entre eles. Sobretudo, a experiência escolar e o domínio da língua portuguesa significaram uma via de mão dupla onde os indígenas também puderam elaborar e defender os interesses deles:

A escola Baniwa, então, configura-se como uma situação de confronto intercultural, na medida em que tem sido espaço de conflitos entre as culturas, os interesses e o poder dos diferentes atores sociais envolvidos. É essa natureza conflituosa que modifica o sentido vertical de imposição atribuído à educação escolar e evidencia seu caráter de possibilidade. AAs possibilidades existentes são engendradas por conexões e subordinações a condicionamentos mais amplos, como é próprio das relações pedagógicas.

(WEIGEL, 2020, p. 6. Grifo nosso)

Trata-se de uma situação bastante específica dado os contextos históricos e sociais vivenciados pelo povo Baniwa, embora a educação escolar indígena potiguara tenha produzido o acesso à língua tupi e, em certos termos, ressignificado as experiências locais com a sociedade mais ampla. Como exemplo, pode-se destacar o interesse de escolas públicas e privadas em realizar visitas ao Catu; da mídia; de alunos universitários e de pesquisadores buscando conhecer a mobilização e luta pela educação específica. Isso demonstra historicamente que a organização política e social dos Potiguara tem edificado resultados positivos e ampliado em muito as redes associativas e de apoiadores em suas relações políticas.

Disto isto, iremos atentar agora para a criança e o jovem indígena, que são reconhecidamente como importantes atores sociais na aldeia. Os jovens são percebidos e se reconhecem como “Pontas da rama”. Uma expressão que sintetiza o lugar e a importância do jovem na organização social e política. Ensaiando um exercício interpretativo, pode-se dizer que a “rama” brota o novo e daí se concretizam as possibilidades de continuidade.

OOs jovens assumem papéis no toré e rituais, participam das mobilizações em outros territórios indígenas, ações políticas e encontros indígenas específicos à juventude. Já as crianças são entendidas como “curumins”, expressão em tupi que fornece significados à infância e como essa vem sendo construída entre os Potiguara no Catu. São metáforas explicativas e relacionadas com os projetos de futuro que também forneceriam as garantias da reprodução social daquele povo.

Durante a pesquisa de mestrado, realizada no Catu (2005-2007), entrevistei diversos anciãos. Foi notável que, para aquela geração, o papel da criança estava muito próximo ao de um adulto. O trabalho era a principal prática na sociabilidade daqueles cidadãos. As tarefas do lar e muitas vezes a agricultura tinham um lugar de destaque no cotidiano. Nesse ponto, um recorte de gênero se faz necessário: aos meninos se atribui ainda mais responsabilidades. A exemplo da narrativa feita pelo senhor Pedro Inácio Eleotério, em 2005, no dia em que se realizou uma Audiência Pública na Câmara Legislativa de Natal, sobre um episódio marcante da sua infância:

[...] Meu pai mandou eu buscar gás e vela para iluminar a casa quando uma irmã minha morreu. ...eu tinha muitas irmãs... ela era bem pequena...aí eu fui... Eu era um menino e já era de noite! Meu pai ensinou para eu botar o ouvido na linha do trem pra saber se vinha alguma coisa... quando eu cheguei na bodega em Goianinha, os homens perguntaram:
- Está sozinho? E eu disse:
- Sim!
Eles tudinho admiraram a minha coragem, o Catu era uma mata [...].

(informação verbal)

Tais experiências, atualmente, ressignificam-se no Catu. As crianças assumem, dentre outros, o lugar de estudantes e desempenham papéis na organização social e produtiva familiar. Nas conversas com alguns idosos, foi possível aprender que o trabalho na roça marcava a sociabilidade das antigas gerações e era sempre citado como oposição ao tempo da escola, do lazer, do “aprender a ler”. Interessante notar que ambas atualmente são atividades associadas e que permitem vivenciar o modo de ser indígena. Isso confere sentido à máxima do movimento social indígena por acesso a uma educação de qualidade, conhecida por mim em 2002, em uma assembleia do Povo Xukuru, no sertão de Pernambuco: “Educação é um direito, mas tem que ser do nosso jeito!”

Não obstante, a forma de organização familiar compreende ainda o tempo de trabalho na unidade de produção doméstica para os jovens. Inclusive, pode-se observar isso no material didático produzido por alguns povos indígenas em Pernambuco. Quando elaboram seu calendário anual, o tempo da escola específica é demarcado também em função do tempo do plantio ou da colheita e de rituais. Esses são exemplos de organizações específicas, e daí também emana o direito à construção de suas metodologias educacionais. A vida comunitária ou da unidade familiar nas possibilidades da educação escolar indígena é respeitado na perspectiva do tempo da comunidade. O que confere autonomia e autoconstrução como realidades dos povos indígenas e suas conquistas sociais

Por outro lado, as especificidades na proteção da criança e do adolescente indígena vão além do direito e acesso à educação escolar como projetos de futuro, cuja gestão cabe aos próprios povos indígenas. Assis Oliveira (2019), professor de Direitos Humanos da UFPA, chama atenção para o direito à terra, ao território como um dos principais direitos violados. Mas ele também se refere a outros níveis de violações, como o direito “à identidade e ao autorreconhecimento”. Chama atenção que essas violações, sobretudo, ocorrem nas situações de convivência em espaços urbanos onde índios e não índios convivem socialmente. As situações de preconceito e de controle coexistem nas relações sociais entre os Potiguara e os locais:

O líder da comunidade Catu põe em discussão um exemplo aparentemente simples da forma como a sociedade nacional interfere na cultura de seu povo. Ele nos esclarece que, até mesmo na hora de dar um nome aos seus recém-nascidos da comunidade há impedimentos. Seja o cartório ou a igreja católica, existem barreiras levantadas para impedir a escolha do nome.

(COSTA, 2020, pp. 212-213)

Como enfrentamento a essa situação de violação de direitos expressada no impedimento da escolha do nome dos próprios filhos, os Potiguara reagiam adotando seus “nomes indígenas” nas aldeias:

Quando chegava na cidade para registrar com nome indígena, a mulher dizia:
- é um nome estranho! Dê o nome de Maria, José, João, Francisco.
Então, o indígena ficava naquele sentido. Quando chegava na aldeia, os troncos, os parentes mudavam. Aquele nome que ele recebeu na cidade desaparecia e ele ganhava o apelido. (Mucunã Katu, Tela Rural, 2020)

Preconceitos, o déficit na educação escolar, a desnutrição ainda são situações recorrentes de violações dos direitos da criança e do adolescente indígena no Brasil. Para Assis Oliveira, um debate tem se apresentado ainda no campo do trabalho infantil, em virtude de situações ocorridas na região sul do país, onde crianças e adolescentes são envolvidos na produção e venda de artesanato. Esse estado de coisas, para o pesquisador, necessita de um outro olhar e “tem colocado ao sistema de garantias de direitos o desafio de repensar suas lógicas de compreensão sobre trabalho, a infância e a relação destes com as condições de vida dos povos indígenas” (OLIVEIRA, 2019).

A escola indígena entre os Potiguara no Catu possui um importante papel na constituição do ser “curumim”, termo usado para se referir às crianças. Tal afirmação, possibilita entender a infância como uma construção social (COHN, 2005; SILVA LOPES, 2002). Aqui se defende a aproximação com suas realidades e experiências. Somente com o conhecimento sistematizado e cuidadosamente produzido é que se torna possível propor e estabelecer políticas públicas que venham atender as especificidades das escolas indígenas e de seus atores sociais protagonistas do cotidiano escolar.

A conquista de praticar em termos oficiais a educação escolar indígena entre os Potiguara, demonstra ainda a construção de direitos em vivenciar uma infância indígena. Direitos estes que muito se relacionam com a criança, embora não mencionados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As menções à criança indígena só ocorreriam em 2009, com a aprovação da lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, que alterou a lei 8.069, de 13 de julho de 1990, do ECA. O Estado brasileiro reconhece o direito específico, e inclui o antropólogo como profissional especialista nas ações relativas à criança e ao adolescente indígena. “Foi possível inserir um novo capítulo no Estatuto, que trata especificamente da questão da adoção da criança indígena” (FUNAI, 2009). A vivência dos direitos para esses atores sociais vem se configurando como um importante tema de debate e mobilização política entre os povos indígenas de forma ampla e no Rio Grande do Norte.

Na história dos Potiguara, pode-se identificar quatro momentos caracterizados por diferentes interesses no que diz respeito à educação escolar. O primeiro corresponderia ao período da implantação da escola na década de 1980, quando a “doação da terra” e a construção da mesma foram viabilizadas por um dos posseiros locais atendendo a um projeto desenvolvimentista e a ampliação do processo de integração que os moradores do Catu vivenciaram naquele período. Houve, assim, construção de estrada vicinal, intensificação da negociação das terras, avanço dos posseiros no território, chegada da luz elétrica e a entrada das usinas (SILVA, 2007).

Num segundo momento, mais de uma década após o primeiro, consideramos as experiências com os diferentes atores sociais e a aproximação com uma língua indígena entre 2002 e 2006. O terceiro momento, entre 2008 e 2010, estaria relacionado com a organização interna dos professores, pais e alunos para inserir o bilinguismo, com o NheenGatu, no projeto de educação específica.

O quarto momento, perceptível agora, ocorreria entre 2011 e 2015, com a instalação de uma Coordenação Técnica Local (CTL/FUNAI) no RN, a consolidação e a oficialização da educação escolar indígena. Com efeito, os Potiguara estabeleceriam um status — no sentido weberiano — entre os povos indígenas, ao ampliarem suas participações em eventos voltados para a educação e temas afins. Por outro lado, esse status ampliaria as relações políticas dos Potiguara e viria a refletir na compreensão dos não-índios sobre a etnicidade e a afirmação identitária indígena no Rio Grande do Norte.

A escola Indígena João Lino revelaria ainda uma memória de domínio da Terra, já que, “doada” por um posseiro em determinado período histórico, há várias décadas é usada como espaço associativo comunitário. Observei que os eventos e as reuniões internas, sejam apenas com os indígenas ou com outros atores sociais, vêm ocorrendo naquele espaço. Para além de um local onde ocorrem práticas educativas institucionalizadas, a escola indígena João Lino, nos vários sentidos, possui um caráter simbólico na luta dos Potiguara e envolve a construção de direitos que traduzidos em políticas públicas venham, de fato, atender aos interesses dos indígenas.

Autora

Claudia Moreira

Mestre em Antropologia Social (UFRN). Pós-Graduanda (lato sensu) em Educação em Direitos Humanos, Diversidade e Questões Étnico - Sociais ou Raciais.

Referências

CRIANÇAS e adolescentes indígenas ganham visibilidade com alterações propostas ao ECA. Agência de notícias do direito da infância (FUNAI), Brasília, nov. 2009. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/2458-criancas-e-adolescentes-indigenas-ganham-visibilidade-com-alteracoes-propostas-ao-eca. Acesso em: 26 jul. 2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: atualizada até a emenda n. 1/92 a 70/92 e pelas emendas de revisão n. 1 a 6/94. Brasília, DF: Senado Federal, 2012, p. 103.

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