[AGECOM/UFRN] Reportagens e Saberes: A geografia da música

Natal, 2 de outubro de 2019 – Edição 47 

UFRN

A geografia da música

Teoria defendida por professor da UFRN extrapola os princípios tradicionais da Geografia para defender os sons como linguagem espacial capaz de definir cartograficamente os territórios
Texto: José de Paiva Rebouças
Fotos: Cícero Oliveira
Experiência científica usa os ritmos e os sons como linguagem espacial 
As músicas “Trenzinho do caipira”, de Heitor Villa-Lobos, e “Os alquimistas estão chegando”, de Jorge Ben Jor, mexem com as percepções do professor Alessandro Dozena. A primeira lhe faz lembrar de quando era criança e morava na casa dos pais, em São Carlos, ao lado da antiga Ferrovia Paulista S/A. A segunda era o que tocava no rádio do táxi que o conduziu do antigo aeroporto Augusto Severo até o centro da cidade de Natal, quando aqui chegou em fevereiro de 2010 para recomeçar a vida.

Lembranças como essas nos transportam através da memória e dos sentidos, pois, muitas vezes, vêm carregadas de cheiros e outras sensações que vão muito além daquilo que se pode dizer. Por isso, sempre interessaram às ciências, mas não só as que estudam a psicologia humana. É também possível ligar a relação dos sons ouvidos em nosso dia a dia com o espaço geográfico por meio de uma teoria que pode ser chamada de geografia da música.

Essa experiência científica usa os ritmos e os sons como linguagem espacial capaz de definir cartograficamente os territórios. A proposta “arrisca colocar em movimento o exercício da desconstrução de uma ciência geográfica mais afeita às regras e padrões normativos que aprisionam suas sonoridades”, como o próprio Dozena explica na introdução do livro Geografia e música (2016), organizado por ele.

Professor Alessandro Dozena, defensor da teoria Geografia e Música

Professor associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRN, Dozena se soma a um pequeno número de pesquisadores no mundo interessados no estudo da cultura e das manifestações artísticas em sua dimensão espacial a partir da música.

O primeiro deles teria sido o francês Georges Gironcourt que, em 1938, publicou o livro “La géographie musicale”. Aqui no Brasil, além de Dozena, se interessam por essa área os pesquisadores Lucas Manassi Panitz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda a música platina e sua relação com a cultura gaúcha, e Marcos Alberto Torres, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), cujo interesse é voltado à compreensão das paisagens sonoras em suas múltiplas possibilidades

“Penso que geografia e música são transversais à vida humana em suas múltiplas dimensões: sons, sentidos, espacialidades, ritmos, fluxos, melodias, etc. , que se constituem em diálogos possíveis de práticas que enredam nas experiências vividas espaço-sonoramente”, explica Dozena ainda no livro Geografia e Música.

Autor também de “A geografia do samba na cidade de São Paulo”, o pesquisador tem defendido sua teoria em vários lugares do Brasil. Recentemente, esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro participando de eventos com esse propósito. No próximo ano, retorna à Europa para discutir seus argumentos e atuar como professor visitante na Universidade Paul-Valéry, em Montpellier, na França, a convite do geógrafo francês Dominique Crozat.

Imagem retirada da capa do livro “Geografia e Música” organizado por Alessandro Dozena

Estrutura da teoria

É comum professores usarem música como recurso didático, mas Dozena explica que, na perspectiva dessa teoria, não basta apenas usar o gênero para identificar lugares. A geografia da música lida com a percepção e a memória, pois o espaço condiciona comportamentos, pensamentos e culturas.

“A bossa nova não surgiu no Rio [de Janeiro] por acaso. Havia uma condição espacial que permitia aos compositores captarem aquela inspiração: o relevo carioca, o momento em que vivia o Rio em seu glamour. Hoje, como isso está diferente, vemos surgir produções como o funk carioca, por exemplo”, explica.

No carnaval de São Paulo, no qual Dozena atuou como jurado, ele percebeu que antes dos desfiles das escolas principais entram os afoxés, que remontam a um movimento secular da cultura africana, assim como muitos elementos do samba e de danças tradicionais brasileiras. “A música transporta as pessoas e, a partir dela, é possível estabelecer dimensões territoriais, históricas e culturais”, completa o professor.

Banco de imagem gratuito Wikimedia Commons

Mas a teoria não se resume apenas à música. De acordo com Dozena, quando se está em uma praça e se ouve o sino de uma igreja, altera-se a apreensão do espaço e a pessoa pode ficar mais emotiva ou mais atenta, já que aquele som lhe traz memórias. “Os sons são linguagens espaciais e alteram nossa noção de apropriação dos espaços”, reforça.

É por isso que quando um professor de Geografia utiliza uma música em sala de aula e focaliza apenas na letra para se referir a determinado lugar, deixando de lado a percepção que aquele som traz aos alunos, ele reduz o potencial da teoria proposta.

Nesse caso específico, orienta o professor, as músicas em Geografia podem ser usadas para identificar de onde vem o ritmo, não como teoria musical, mas como registro espacial. “O som é um potencializador de memória e sentimento, considerando que paisagem não é apenas o que o olhar abarca, mas o que a mente concebe”, acrescenta.

Nuanças da teoria

Olhando de fora é fácil perceber a linha tênue que separa a perspectiva defendida por Dozena de outros campos de pesquisa. Isso porque a concepção da teoria que relaciona Geografia e Música traz muitos elementos da Sociologia, da Antropologia, da Teoria Musical e até da Educação Artística. Mas é exatamente essa complexidade que, na visão do pesquisador, torna essa ideia forte, uma vez que fortalece a necessidade da inter e da multidisciplinaridade na formação humana.

Atrelada ao subcampo da Geografia Humanista-Cultural, Alessandro Dozena assegura que a proposta atende aos princípios geográficos clássicos em toda a essência, como o da Localização. Ela busca identificar onde está o fenômeno, seja ele uma festa, uma tribo indígena, uma comunidade quilombola, um fato cultural religioso ou qualquer outra manifestação cultural. “Quando se observa onde e por que o fato cultural está em determinado lugar, se constrói um raciocínio espacial, o que não é uma preocupação específica do antropólogo, sociólogo ou historiador”, diz Dozena.

Ao identificar até onde vai o fenômeno, a teoria atende aos princípios clássicos da Extensão e da Conexão. “Onde está e até aonde vai? Isso também provoca um raciocínio geográfico, no qual se percebem conexões, redes entre uma igreja e outra, um grupo de rua e outro, uma escola de samba e outra”, interpreta o professor, fazendo referência às chamadas redes geográficas.

Os últimos princípios geográficos em evidência para sustentar a proposta de Dozena são o da Particularidade e da Totalidade. “Tudo é particular, isso interessa ao antropólogo, ao sociólogo, mas eles focam muito mais na questão cultural. Um aborígene entalhando uma madeira, por exemplo, desperta no geógrafo o interesse de saber de que localização veio aquela madeira, para definir o elemento econômico; quem cedeu a madeira, para definir os elementos políticos; e qual tipo de madeira está sendo usada, para definir o elemento natural. Isso tudo nos leva a outro princípio básico que é o da Totalidade, ligado à dimensão mais ampla do universo, enquanto realidade de todas as existências”, contextualiza o pesquisador.

Um exemplo desses princípios é o carnaval. Fenômeno sociológico, ou fato social, a festa, vista em um panorama espacial ou geográfico, permite a geração de mapas indicando os tipos de carnavais existentes, se são heterogêneos e quais conexões provocam. A utilização do tambor percussivo gera um vínculo com a cultura africana, ao mesmo tempo que esse instrumento conecta todas as escolas de samba do Brasil e as comunidades dos tambores, que também estão em países latinos como Cuba e Colômbia, para citar alguns.

Quando escrevia o livro “A geografia do samba”, Alessandro Dozena identificou na fala dos entrevistados uma relação dos movimentos do samba da cidade de São Paulo com o rio Tietê e com o samba. “Ao buscar por respostas, percebi que, à medida que a cidade foi sendo urbanizada, as periferias foram sendo afastadas do leito do rio, de maneira que a história do samba é, em parte, também a história do rio, que ficou no centro e rodeado pela periferias”, conta.

Reprodução

O músico geógrafo

Alessandro Dozena tocava em uma banda de baile quando resolveu prestar vestibular. Pensou em Música, mas acabou escolhendo Geografia. Tornou-se geógrafo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Rio Claro), mas também estudou música na Universidade Livre de Música (ULM/São Paulo).

Atualmente é professor associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGE-UFRN), no qual dirige o grupo de pesquisa Festas, Identidades e Territorialidades (FIT-CNPq). Ele também é professor do Mestrado Profissional em Geografia (GEOPROF-UFRN).

Mestre e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP-São Paulo), com doutorado-sanduíche na Universidad de Barcelona (UB), realizou pós-doutorado na Université Paul-Valéry Montpellier (UPV), como bolsista da CAPES. Em 2010, veio para Natal após aprovação em concurso público para a UFRN.

Publicou os livros: Geografia e Música: Diálogos (2016); Espaço-Tempo: Enredos entre Geografia e História (2015); A Geografia do Samba na Cidade de São Paulo (2012); e São Carlos e seu Desenvolvimento: Contradições Urbanas de um Polo Tecnológico (2008).

É ainda tutor do Programa de Educação Tutorial – PET Geografia (UFRN), integrante do Grupo Vocal Octo Voci da Escola de Música da UFRN (EMUFRN), e membro do Comitê Géographies Culturelles vinculado ao Comitê Nacional Francês de Geografia (CNFG).

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